quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A luz ao fundo do túnel

Todos falavam de uma luz. Da luz ao fundo do túnel. Pelo que entendia era quase como que encontrar a solução para todos os problemas. Todos diziam procurá-la, no trabalho, em casa, até no pequeno restaurante de todos os dias a procuravam. Encontravam-se todos envoltos em escuridão, calculou. Via neles uma esperança, quase como que uma veneração por essa luz. Um dia deu consigo a querer encontrar essa luz também. O problema que acabou por se lhe colocar é que a vida dele era só luz. Não havia nada que o puxasse para a escuridão, para conseguir encontrar a luz teria de arranjar forma de transformar o seu mundo em negro. Um mundo que sempre fora luz teria de se tornar em escuro, só para encontrar a "bendita" luz. Não sabia bem como havia de começar esta transformação. Começou por pequenas falhas no emprego, que em pouco tempo se tornaram grandes e ao fim de uns meses insustentáveis, foi despedido. De início perder o emprego não lhe parecia suficiente, teria também de perder alguns amigos. Começou a portar-se como as pessoas que sempre criticou, mesmo assim eles foram ficando, começou a comportar-se pior ainda, aos poucos perdeu-os. Continuava a ter luz na sua vida, a sua mulher continuava a apoiá-lo incondicionalmente, talvez fosse ela que ainda o suportasse. Decidiu trair-lhe a confiança, nada demais, uma mentira aqui, outra acolá. Envenenou-os aos dois, afastaram-se. Mesmo assim o escuro parecia não o atingir. Decidiu desistir da luz ao fundo do túnel. Decidiu voltar à vida que sempre fora sua. Quando voltou a si, voltou sozinho ninguém o esperava como sempre. Os seus amigos tornaram-se meros conhecidos em fuga, a sua mulher aproximara-se de um dos amigos que se afastava, até no trabalho, onde sempre fora considerado um funcionário exemplar o rejeitaram. Agora que desistira da escuridão parecia ter sido abalroado por ela. Mas se no caso dos outros todos que procuravam a luz havia esperança, no seu caso não havia esperança alguma, foi ele que destruiu tudo propositadamente. Não há, agora para onde voltar, nem para onde ir. Destruiu todos os caminhos, tapou todas as portas com aquela cega vontade de entrar no túnel. Antes de se ter perdido completamente no túnel escuro, sombrio e húmido deu por si a pensar que não valia mais a pena a viagem. O seu destino era este, o túnel. Sabia que nunca voltaria a encontrar luz. Deixou-o escrito pouco antes de se ter atirado de um baixo 14º andar, baixo porque não lhe parecera suficientemente alto para ter tempo de abraçar a morte, a morte que brilhava lá ao fundo. Era esta a sua luz, estava tão perdido que o fim da escuridão por fechar os olhos para sempre lhe serviu de luz. Dizem ainda que por um breve momento voltou a ser feliz, soube ali que tudo chegara ao fim. Não se sabe se percebeu que o escuro não se procura, acaba por se encontrar sem querer e acaba por se ficar até não querer mais. Uns aguentam, outros tropeçam, outros fazem por cair.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Para onde?

E ali estava, mais uma vez. Parecia que todas as circunstâncias o faziam caminhar naquela direcção, sempre. Às vezes perguntava-se, meio desorientado, porque é que ia sempre para ali, mesmo sabendo que aquele caminho não o levava a parte alguma, ou, se quisermos, não o levava no sentido que um dia traçara como seu, era como se caminhasse no sentido de outra pessoa qualquer. Ao caminhar para ali, apesar de o fazer aproximar-se dele, afastava-o do seu sentido. Era quase como caminhar para "trás" dele, sentia que ao ir naquele sentido, apesar de ir para a frente recuava. Por ali ficou até ser tarde, porque a vontade de ficar vencia sempre toda a razão, ou não razão, como quisermos. Ficou, foi ele, foi feliz, foi simples... Sabe-se que não caminhou para onde sempre quis, mas sabe-se pelo menos que foi sempre ele, apesar de não ter ido longe, nem ter chegado onde um dia quisera, foi feliz. E enquanto assim foi, ficou. Ficou até o deixarem ficar, dali não se sabe se conseguiu seguir o caminho de sempre, não se sabe nada, não se sabe se foi a tempo, se foi tarde, se chegou a ir, ou até se depois de tudo aquele ainda era o caminho. Sabe-se que foi feliz, por um momento, por um breve e marcante momento. Se se perdeu, perdeu-se em felicidade!

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Memória

O cérebro humano é capaz de armazenar milhares de memórias que englobam gestos indispensáveis ao dia-a-dia, lembranças de caras e lugares, palavras, coordenadas, isto num aparente caos de sinapses e electricidade mas onde tudo tem o seu lugar e onde parece caber sempre mais qualquer coisa. Perante isto, saber que se caiu no esquecimento de alguém deve ser das coisas mais tristes que podemos experimentar e sentir. A irrelevância perante a memória do outro, a noção de que não marcámos, que nada mudámos. É como se não tivéssemos existido.

“Não te esqueças de mim” é uma das expressões mais carregadas de significado que conheço. Está para mim a par dum “tenho saudades tuas” ou um “amo-te”, talvez, porque consegue encerrar em si tanto de tudo do que as outras expressões são. Não é a qualquer um que pedimos para não ser esquecidos, por norma, só o pedimos a dois tipos de pessoas: às que amamos muito e às que detestamos muito. Às primeiras, as amadas, pedimos para ser lembrados pois em nós, já sabemos que elas vão existir para sempre, independentemente dos anos, da distância, da inevitável perda física. Às que odiamos muito até podemos nem pedir para ser não sermos esquecidos mas estamos certos de que se elas se esquecerem de nós, perdemos o objecto do ódio e depois? Valerá mesmo a pena odiar sozinho quem nem se lembra de nós? Perda de tempo, ocupação desnecessária de gavetas que podiam estar encravadas com memórias boas.

Se há filme que me marcou neste sentido foi o "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" ("Despertar da Mente", em português) pois aborda de uma maneira sublime e extremamente bela a ideia do facilitismo aparente do esquecimento. Se no início do filme estamos desejosos de que aquele método de cura para o coração partido seja real, no fim, damos por nós a viver as “dores” de Joel, a torcer pela sua escapatória à ruína das ternas memórias que tem com Clementine, a miúda do cabelo azul que fez o que ele não foi capaz de fazer: esqueceu-o. O ser humano tem destas coisas, na hora de esquecer agarra-se ao mau, às lágrimas, às discussões, alimenta ódios e raivas ignorando por completo que a melhor maneira de se superar algo (um amor, uma morte, etc.) é deixar que as memórias boas se instalem, ocupem lugar, curem, libertem.

A memória do aroma do sabonete da mãe far-nos-á para sempre usar essa marca lá por casa. Ouvir uma música por acaso e jurar que se sentiu a presença da pessoa com quem a ouvíamos. As fotos engalanadas com sorrisos, belas paisagens ou até um postal tornam-se eternas pois materializam o que “cá dentro” aconteceu. Saramago disse e com razão que “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade, talvez não mereçamos existir”. Sou por isso responsável pelos que faço existir em mim, simplesmente, não os esquecendo.

Os dias não são todos iguais

Olhou para o relógio, já era tarde, no entanto o dia parecia não ter ainda nascido. A sua mulher dormia ainda profundamente ao seu lado, coisa que àquela hora não era habitual, ela saía muito antes dele e nunca adormecera até então. Algo parecia estar errado, seria um problema com o relógio? Seria um problema com o dia? Será que nasceu com a luz apagada hoje? Nada parecia fazer sentido, levantou-se. Caminhou lentamente pela casa. Veio à porta, na rua ninguém parecia apressado como de costume, pelo contrário, dedicavam-se a tarefas caseiras, jardinagem, brincar com os miúdos, não se sentia o peso dos dias, como de costume. Quis trocar uma ideia com alguém que passasse, mas todos pareciam fugir-lhe. Decidiu então acordar a mulher, isto não era normal, este dia não era igual aos outros, nada fazia sentido. Acordou-a, ternamente para não a assustar, sussurrou-lhe que era tarde e devia ir trabalhar. Ela respondeu-lhe baixinho que era Sábado e que passaram o dia a dormir... Era o primeiro Sábado dele naquela casa. Os dias já não eram iguais... E amanhã, será que se lembraria ser Domingo? Seriam os dias iguais ali, naquela casa? Seriam todos diferentes? Como é que iria conseguir distingui-los como sempre fizera antes? Foram perguntas destas que o foram transformando num prisioneiro do tempo e ele, coitado, nunca chegou a perceber que não era livre. Ia dormir agora... Amanhã seria outro dia... Não se sabe qual, mas seria outro e não seria igual a mais nenhum, nem se voltaria a repetir, já aprendera isso, pelo menos.

domingo, 27 de outubro de 2013

"Choose a side to be on" he said



Dele diz-se ter sido compositor, daqueles que marcam toda uma geração. Também tocava guitarra, bem pelo que dizem.. Morreu, sabe-se que o fígado teve de ser trocado e sabe-se que a genialidade morre agora com ele... Fica a música, que se não sabe se meio popular se o verdadeiro e puro rock, sabe-se apenas ser genial. Eu conheço pouco. Portanto deixo o mais comercial. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Nunca viram tal

Uma vez um senhor virou-se para um grupo de cegos e disse:
- O que chegar primeiro a mim, farei com que volte a ver.
Todos correram na direcção da voz, menos um. Todos caíram
a uma vala e morreram menos um. O que via um bocadinho
ficou ali, apenas, à beira do precipício, sem conseguir chegar
ao homem. Apesar de todos os outros terem morrido, dizem
ter sido este o que ficou mais longe de voltar a ver claramente!

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Escolhas

Soube há pouco que ela já lhe tinha marcado as férias e traçado o destino. Era sempre assim, nem sabia como ainda se surpreendia. Estava decidido, partiam dali a cinco dias para Málaga. Não valia a pena tentar outro destino de praia, era tudo muito caro. Ele até queria ir visitar uma cidade com um bocadinho de história e sem bonecos de praia que correm para a areia aos primeiros raios de sol. Malas feitas e desfeitas de seguida por ela lá foram. Pensava agora na viagem que além de não escolher para onde ia, nem sequer teve hipótese de escolher o que vestir para se despir da sua vida de todos os dias. E enquanto este pensamento lhe varria o pensamento ela já lhe havia pedido um café... Nem isso escolheu, começava a ficar um bocadinho incomodado, parecia que todas as decisões já estavam tomadas antes de lhe aparecerem. Por lá ficaram uns longos 9 dias e que longos. Ao chegar deparou-se com mais uma surpresa, parece que decidiram pintar a casa por fora, faltava ver por dentro. O mesmo, tudo novo, tudo diferente. Era como voltar para uma casa que há muito não conheciam, mas só se tinham passado 9 dias. De manhã, quando saía do banho deu conta que já tinha a roupa separada, restava-lhe ao menos escolher o pequeno almoço. Torradas com manteiga e um café morno, também já estava escolhido. Ao menos ainda poderia escolher a bomba de gasóleo para abastecer no caminho para o trabalho que ela impingiu.
- Já meti gasóleo ontem, não tens de te preocupar com nada, até logo!! - atirou ela da porta.

E foi ali que tudo acabou, naquele até logo que se tornou num até nunca mais. Acabou por falta de opções, quando afinal tinham havido tantas. Sabe-se que durante vários dias vagueou pela vida sem saber por onde ir, afinal tinha de voltar a aprender a fazer tudo. Dela sabe-se que lá encontrou alguém que controlaria como sempre fizera, sem que todos o percebessem, às vezes nem ela.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A terra é quadrada

Sentou-se na mesa do café onde habitualmente se sentava com o seu melhor amigo, onde tantas vezes o tentara convencer de que o mundo era quadrado e nunca conseguira. Mas, desta vez, tinha uma nova estratégia, uma estratégia que talvez resultasse. Trazia consigo uma pequena bola. Ao fim de algum tempo conseguiu convencer o amigo de que a bola era um quadrado. Com isto e sabendo que o amigo já tinha descoberto pela televisão a forma da Terra, conseguiu que ele concordasse consigo de que a terra era mesmo quadrada convencendo-o de que uma bola era um quadrado. Daí para sempre teimava com toda a gente de que a terra era quadrada e não dava margem para discussões, porque ele sabia que a terra assim, só não sabia de que uma bola não é um quadrado. Mas sabia da verdadeira forma do mundo. E devia ser algures por aqui que todos os alguéns se deviam convencer de que ninguém está nunca absolutamente errado, às vezes só não lhe explicaram bem as formas e os contornos do que realmente conhecem.


domingo, 20 de outubro de 2013

Boa noite

Naquele dia, foi dia até ser noite. Costuma ser sempre assim, mas só naquele dia é que percebeu que era daquela forma que os dias acabavam, era sempre dia até ser noite. Todos os dias fazia o mesmo caminho de casa, saía do carro, esperava para ouvir o portão bater e ter a certeza de que fechou e sentir-se assim protegido do mundo lá fora. Um dia, de dia entrou em casa, na casa que sempre fora sua, saiu ainda de dia para um sítio que se sabe ser costume visitar. À noite quando voltou o portão, como sempre, abriu-se e ele entrou. Quando chegou a casa descobriu que já não era a sua casa e já ali não pertencia. Era estranho, parecia que sempre fora dali, nunca tinha percebido que tentava construir a sua casa onde já havia existido outra. Dava conta agora que ficou sempre ali, ao portão, noite e dia. E foi só agora que percebeu que existem os dois e que um não substitui o outro, acabam apenas por se completar. Foi aí que decidiu que não precisava de uma casa, pelo menos de uma casa qualquer. Diz-se que começou a viver mais à noite, não se sabe se pelo coração ser escuro, se por não gostar da verdade da luz. Tornou-se escuro e não é triste, só não é tão feliz.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Papel gasto pela vida

Escrevia para ela todos os dias. Mesmo depois de tudo, mesmo depois do fim. Todos os dias tentava encontrar dentro de si tudo o que o puxava para ela. Ao fim de algum tempo começou a perceber que tudo o puxava para ela, começou a perceber que todo o seu mundo orbitava à volta dela. "Seria ela a sua estrela?", escrevera uma vez... Dias, meses, anos se passaram sem se tocarem, nem num breve olá. E em todos esses dias lhe escreveu. Ao fim de muito tempo olhou para trás e percebeu que ela mais não era que o que escrevia, percebeu por fim que ela era perfeita porque ele a escrevera assim. percebeu finalmente que não gostava tanto dela quanto seria de esperar. Não sentia sequer a falta dela, sentia apenas a falta da pessoa para quem escrevia todos os dias, no fundo, essa pessoa nunca existira. Do que ele gostava mesmo era de escrever. Desde aí escreveu sempre, não para ela, mas para ele. Ela não mais fora que o que ele inventara dela em papel gasto pela vida. E o seu amor mais não é agora que uns quantos pedaços de papel.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Curtas

É incrível a forma como ainda nos deixamos levar por aquilo que não nos leva a lado algum...

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Tristeza nos olhos mais alegres


E depois, ao fim de muito tempo, deu consigo a ter saudade do seu país... É muito mais difícil construir uma vida num país que não é o nosso, descobriu agora, com um certo assombro. À medida que se ia afastando nem deu conta de para onde caminhava, pensava que tudo seria igual. Talvez não fosse preciso mudar os costumes, talvez os amigos se fossem continuando a encontrar como sempre, talvez conseguisse manter os hábitos que tão familiares lhe eram. Talvez... Foi com esta mentalidade que foi abandonando o seu país. Não sabia que ao mudar de país, por muito gradual e subtil que a mudança fosse, tudo o que tinha como real, mais não seria que uma longínqua recordação de como bom era viver naquele país que sempre fora o seu. A realidade caiu-lhe aos pés como uma pedra grande atirada de um arranha-céus. As pessoas lá, no outro país, eram mais tristes, a sua aura era mais cinzenta, as gargalhadas do seu país foram, aos poucos, transformando-se em lamurias, os grandes projectos tornaram-se em pequenas conquistas perdidas pouco depois. Lá, nesse país para onde viajara, não imperava a alegria e o espírito do seu país natal. Lá, nesse país tudo era desgraça e nada parecia ter tendência a melhorar. 
Quando deu conta deparou com uma triste e estridente realidade... Não foi ele que mudou de país, foi o país que mudou dele. Perguntava-se agora como é que chegou ali, àquele país que não era dele, sem nunca ter saído do mesmo sítio. Tentava culpar um ou outro mas ninguém o ouvia, no fundo já ninguém ouvia ninguém. O país que sempre fora acolhedor parecia querer mandá-lo embora... E como se só isso não fosse suficiente, aqueles que tomaram conta daquele país que fora seu, ainda o incentivavam a sair, como se alguma vez fosse possível, naquele país de outros tempos, uns quantos senhores bem vestidos e bem remunerados, expulsar todo um povo lutador e sonhador. Pegou no carro, com vontade de espalhar por todos os cantos do país que um dia também fora dele, mas ao fim de uns quantos metros desistiu porque sozinho não faria a diferença num país agora cinzento, cansado e com medo de sonhar. Talvez um dia, aquele povo que um dia habitou o seu país, acorde do pesado pesadelo e consiga voltar o país que no fundo sempre foi dele. Até lá... Tristeza nos olhos mais alegres.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Silêncio, que se vai ficar calado

Diz-se muito, ainda, daqueles que dizem pouco. Talvez porque confunda as pessoas haver alguém que não tem sempre de dizer alguma coisa. As pessoas habituaram-se de tal forma a ouvir sempre a mesma coisa que não aceitam o silêncio dos outros. Pelo contrário, olham para ele com um certo receio. Ainda acerca do silêncio ou do falar demais tenho a dizer que...

sábado, 12 de outubro de 2013

Uma questão de tempo

Corriam todos na sua direcção... Parecia que o mundo se queria aproximar dele, decidiu esperar... Vinham de todas as direcções, vinham longe, decidiu esperar, mas ainda estavam todos muito longe, tão longe que ao ao fim de 3 longos dias ainda pareciam estar no mesmo sítio. E ao fim desse tempo, todos pareciam à mesma distância, ou então seria da fome, sede não seria que tinha uma garrafa de água que ia bebendo lentamente, como que a adivinhar que demorariam muito. Continuou à espera, mais tarde ou mais cedo chegariam à beira sua beira e trariam, com certeza, comida, bebida e ofertas várias. No fim de contas ele era o centro do mundo e todos vinham na sua direcção. Ao fim de uns quantos dias, não se sabe bem quantos caiu. Diz-se agora que morreu ao fim de uns 8 dias. Diz quem o conhece que se julgava importante, talvez o centro do mundo e de todas as suas atenções. Morreu sem perceber que as pessoas iam e vinham, na sua rotina habitual e nem deram pela sua presença no centro de um verde parque. Quem o conhecia disse também que mesmo que lhe dissessem que ninguém vinha na sua direcção ele teria continuado à espera porque também se julgava o dono da razão. E assim viveu e assim morreu, sempre dono da razão... E se não fosse a sua razão estar errada, teria vivido com sentido. Os que não o conheciam disseram que quando percebeu que ninguém vinha para si tentou ir para os outros, mas andou às voltas porque não conseguiu perceber quem tinha mais perto e esquecendo-se de que o caminho deve ser sempre em frente, sempre que lhe parecia ter alguém mais perto voltava para trás, para os que pareciam mais perto. E assim morreu, longe dos que teria alcançado se tivesse continuado.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Levado à letra

Entraram para a sala de teatro, assim quase como que a correr. Tinham-se atrasado, cruzaram-se com uns amigos que iam,com toda a certeza ver outra peça qualquer, lembraram-se pouco antes do fim. Sentaram-se na primeira fila e por ali ficaram durante toda a peça. Às vezes um ou o outro vinha cá fora comprar alguma coisa para lhes alimentar a fome que se fazia sentir nas cenas que pareciam iguais a outras que já tinham visto. Mal se davam conta de que a peça a que assistiam nada mais era que a vida de outra pessoa qualquer, que a viam a partir de casa, do café, do trabalho, de qualquer sítio assistiam ou discutiam a vida desse homem anónimo, com uma vida como tantas outras, com rotinas inquebráveis, hábitos inquestionáveis, vícios recrimináveis. Mal se davam conta que enquanto assistiam à vida, ou peça de teatro do outro a sua própria vida era esquecida, tornaram-na menos importante que o teatro do outro. E aos poucos a cortina foi-se fechando e nunca tiveram a oportunidade de afirmar que "A vida é uma peça de teatro" mais não era que um cliché a cair em desgaste. Acabadas as suas vidas, fechadas as suas cortinas, o teatro do outro homem lá continuou com todos os defeitos que lhe apontaram sempre, a fazer o que os outros, os que assistiam não faziam... A viver. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Chove cá dentro... "Faz sol lá fora"


Lá fora sentia-se um vento, não se sabe se frio se quente, lá dentro o calor fazia-se cuspir por um daqueles aparelhos de aquecimento que se amontoam agora pelas divisões da casa. Talvez fosse frio... O vento. Lá dentro todos se sentiam protegidos, sem frio, aconchegados. A casa era grande e eles eram só dois. Cá fora, ao vento, estava aqueles que não tinham casa. Amontoavam-se cá fora à falta de dinheiro para um tecto. Mesmo a comida se fazia escassa por estes dias. Foram vítimas de um país que os arruinou. Os outros, os da casa grande e vazia de sentimento ignoravam os gritos mudos dos que tinham fome e não tinham força. Dali, aconchegados, riam, quase como que para aquecer a alma fria e oca. O calor podia aquecer-lhes os pés, mas nunca lhes aqueceria a alma. Há muito haviam deixado de sentir para serem felizes. Os outros, os que tinham fome cá fora ainda sentiam, ainda davam valor, ainda dividam o nada que tinham pelos muitos que eram. 
Os da casa e os da rua julgavam-se sem esperança. Os da casa viviam só porque parecia mal morrerem porque quiseram, afinal tinham de manter a imagem de sempre. Os da rua imaginavam-se a morrer ali, ao frio, pelo menos ninguém lhes diria que estavam gordos (era uma piada que usavam, para ao menos morrerem com dignidade). Um dia, o calor que se fazia sentir vindo da lareira atirou-se aos cortinados queimou-lhes a casa, não os matou. Com a casa tudo o que tinham desapareceu e nenhum daqueles que um dia frequentaram a casa, nenhum daqueles a quem queriam mostrar a felicidade que não tinham, nenhum desses os ajudou. Ajudaram-nos sim os da rua. Não, não os mataram (isso seria ajudar demais), aceitaram-nos apenas na rua e deixaram-nos viver. Diz-se quem viu de perto que lhes deram um cantinho junto deles. E o que eles mais queriam era um cantinho longe do mundo. E por ali ficaram até perceberem que este nada que tinham era mais real do que tudo o que tiveram quando viviam na casa, quando viviam para os outros. E por momentos chegaram a amar-se, a amar-se como nunca se tinham amado antes. Aos poucos foram aceitando o olhar reprovador de todos os outros, não fosse a fome e talvez tivessem sido felizes... 
Afinal não precisavam de tanto, só precisavam de uma ou outra refeição e um do outro... Agora era tarde para ser feliz... E tarde para ter fome. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O homem que se fez

Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, cavadas na terra, sem mais nada... Daquelas escadas que se a passada fosse mais forte se desfaziam e a queda seria o destino mais provável. No entanto, mesmo com essas escadas, as pessoas não tinham tanto medo de cair como agora, nas escadas fortes e seguras que construíram para evitar uma queda, que até sabia bem e arrancava uma gargalhada. Dali conseguia ouvir o rio correr, correr para o mesmo sítio de sempre, ainda não sabia que o mesmo sítio de sempre podia ser sempre diferente. Desta janela imaginava lutas intermináveis contra monstros nunca vistos, imaginava-se capaz de voar um dia, correr o mundo como corria pelos quintais à volta de casa, porque o mundo era pequenino só para quem sabia voar. Dali imaginou que seria diferente de toda a gente, que iria muito mais longe, dali, daquela janela conseguia perceber que não havia país que o dissesse como seu, não haveria limites nem obstáculos para as suas vontades. Seria livre, livre como nunca ninguém foi, ditaria o seu próprio destino, sem medo de opiniões, sem regras que o guiassem. Enfim, seria ele, ele próprio, como nunca ninguém se atrevera a ser.
Depois, um dia, muitos anos depois... Já tinha cumprido a escolaridade obrigatória, já o tinham ensinado a não voar, cortaram-lhe as asas e deram-lhe um trabalho, que lhe impôs as regras que imaginara nunca ter. Durante algum tempo nem ia pelas escadas, subia de elevador, agora tinha medo que o elevador parasse e já temia cair escadas abaixo. Comprou um apartamento rés do chão com uma janela virada para o fim e uma gaiola para prender a imaginação. E o "era uma vez" tornou-se num "até ao fim" e por ali ficou até perceber que nunca tivera asas, tinha sim uma enorme vontade de voar, presa agora numa gaiola enferrujada...
Imagem sugerida por je suis... noir

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Do amor pouco fica

Era um dia quente de Maio, ou seria Junho, perdeu-se no tempo havia muitos anos, e por arrasto ou encantamento esqueceu-se também de que se perdia no tempo. Mas este pequeno pormenor não é importante para a história. Nesse tal dia que se não lembra viu-a a passar, disso tinha a certeza, ela passou, não sabe quando e não tem bem a certeza de onde. Sabe que a voltou a encontrar noutro lado, talvez um mês depois, talvez nem tenha sido tanto tempo. Encontrou-a, dirigiu-se a ela e perguntou-lhe se nunca se haviam conhecido. Também se não lembrava muitas vezes que se esquecia de coisas importantes. Ela respondeu-lhe que sim, que foram casados e as coisas não tinham corrido bem. Não lhe quis perguntar porquê. Saiu. Triste, pelo que se lembrava. Como poderia alguém deixar de amar alguém com aquelas feições. Via nela a sua alegria, a sua razão. Não lhe perguntou se foram casados muito tempo. Ou se já tinham seguidos caminhos diferentes há muito. Depois, deu conta de que esta história não era sua, talvez fosse só a sua imaginação. Também não se lembrava que era doido. Agora percebe-se porque se esquecia tanto, era a sua defesa contra a vida. 

Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, ...