terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda, 
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida. 
Relembro, e uma angústia 
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo. 
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver! 
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão. 
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte. 
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo, 
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...
Se em certa altura 
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita; 
Se em certo momento 
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim; 
Se em certa conversa 
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro — 
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro 
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido, 
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo; 
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse; 
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas, 
Claras, inevitáveis, naturais, 
A conversa fechada concludentemente, 
A matéria toda resolvida... 
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

domingo, 6 de outubro de 2019

Coloquei-te o meu mundo na tua mão. Acreditei que contigo esse mundo poderia tornar-se mágico. A forma como brincavas com ele e como o fazias rodar à velocidade do teu sorriso, era feliz. Deixei-te ficar com ele. Acreditei que não faria sentido deixares de o fazer brilhar porque julgava brilhares também. Acreditei e não passou disso. Uma inocência que custou a quase destruição de um mundo que podia ter sido só nosso. No fim, partiste para outro mundo, para o teu, para aquele que nunca deixaste mesmo para trás. Aproveitaste que tinhas um outro mundo e foste brincado, quase como que quem brinca para passar tempo, ignorando que, como quando uma estrela aquece um planeta, todo esse planeta passa a depender do calor da sua estrela para continuar a viver. Mas tu não quiseste saber. Foste brincando enquanto foi conveniente ficar por outra galáxia, mas assim que te foi possível voltar, voltaste e nem esperança onde antes havia calor deixaste. Partiste sem problema, sabendo que já não precisavas deste mundo, porque agora já não precisavas de te entreter. E foste sem querer saber tudo o que destruíste, porque já nem valia a pena. 

Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, ...