segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um músico, mais um

"“Mais um…” pensou o músico enquanto se sentava no seu camarim à espera que os roadies acabassem de montar o material. A cadeira de mogno preto, com almofada forrada a cetim vermelho, já o acompanhava há anos. Quantos? Já nem conseguia recordar-se…


“Em que cidade é hoje o concerto, mesmo?” Há tantos meses que andava na estrada que tudo lhe parecia igual. Estava com saudades de casa, saudades de passar o dia no sofá, a preguiçar. Saudades de um dia banal, aborrecido, sem que nada acontecesse.

Abriu uma garrafa de Jack Daniel’s e encheu o pequeno copo de shot. Bebeu-o de um trago. Voltou a repetir o acto três vezes. O álcool acompanhava-o há mais tempo que a cadeira de mogno preto. “Sempre ajuda a aguentar”, pensou. Lá em cima, o público impaciente fazia-se ouvir. Gritavam por ele, chamavam-no, queriam-no… No princípio, isso era o que o fazia vibrar. A comunhão com aquela multidão de almas fazia-o sentir-se um deus, imortal e invencível! Ah, como era boa essa sensação! Hoje, tudo lhe parecia vazio, oco, sem sentido. Quando subia ao palco já não sentia nada. Os seus fãs pareciam-lhe manequins sem rosto, com alma de microchip.

Acendeu um cigarro. Três baforadas e apagou-o. Olhou para o cinzeiro e nele viu a mais perfeita metáfora para a sua vida. Estava cansado, farto de existir.. Ninguém conseguia perceber o que lhe ia no interior. Ninguém percebia o quanto dava dele em cada actuação, o quanto sofria pela sua arte. Ninguém conseguia ver as cicatrizes do seu espírito tatuadas em cada acorde, em cada verso, em cada palco. Voltou a encher o copo e bebeu.

Levantou-se. Olhou em volta e viu uma liga no chão. Uma das goupies devia ter-se esquecido. Já nem as orgias, as drogas e as noitadas lhe davam alento. Recordou os tempos em que tudo isso lhe parecia o paraíso do rock&roll e chorou. “Pelo menos ainda consigo sentir alguma coisa”, pensou enquanto limpava as lágrimas. Onde estaria a sua caixa? Encontrou-a ao fundo, encostada à sua viola. Pegou nela e de dentro retirou um saquinho de cocaína. Fez quatro riscos na mesa. Parou. O vício tinha-lhe destruído o casamento. O vício e os constantes meses na estrada, com todas as traições que isso traz. “Tudo pela música”, dizia ele à esposa, mas no fundo sabia que era mentira. Fazia-o porque precisava de algo que lhe trouxesse de novo a adrenalina que sentia quando começou a tocar e que perdeu já nem sabia quando. Deu os quatro riscos e voltou a sentar-se.

Estava quase na hora. Pensou em desistir. Porque é que ainda o fazia? Não era por dinheiro, pois fama e fortuna já tinha desde há dez álbuns atrás. Fazia-o porque, apesar de tudo, precisava de o fazer. A alma estava morta, o sofrimento era constante, mas um músico é sempre um músico, assim como um poeta é sempre um poeta. Ela era os dois.

Bateram à porta. “Está na hora”, ouviu. “Ok.”, respondeu com apatia. Pegou na viola, olhou em volta e exclamou “mais um!”. Saiu. Percorreu o corredor que dava para o palco em passo lento. Ouvia a multidão a chamar por ele. “Mais um… Amanhã outro, depois outro e depois outro… Preso para sempre neste círculo mortal. Cada dia, um pouco mais de mim se vai sem que ninguém o perceba. Cada música um requiem à minha sanidade.” Subiu ao palco. A multidão grita em êxtase. O músico olha em volta, respira fundo e começa o concerto:

Doidas, doidas, andam as galinhas
Para pôr o ovo lá no buraquinho
Raspam, raspam, raspam
P’ra alisar a terra
Picam, picam, picam Para fazer o ninho…”

Aristocratas

1 comentário:

Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, ...