No rosto trazia as marcas das suas experiências... No entanto, nos seus olhos era evidente a calma, a inocência, o olhar de quem nunca se arrependeu de passo algum dado, tinha o sorriso carregado de alegria, alegria essa que ninguém adivinhava depois de a ver ali, na rua, uma sem abrigo como todos ingenuamente lhe chamariam. Ali estava ela, sem vergonha, com a voz firme, confiante de que algum de nós lhe iria pagar um pão com queijo. Não falhou, entre todos nós, aparentes miúdos carregados de maldade, algum iria com toda a certeza pagar, porque quem está de dentro sabe os que de fora não imaginam sequer. E esta senhora, que aparentava ainda se não ter afastado do olhar atento de Deus, sabia que éramos muito mais, seriamos como ela se conseguíssemos. Entre uma e outra palavra que acabaria por ser uma longa e cativante conversa, lá nos explicou que já fora uma senhora rica, que dera tudo para a caridade à excepção da sua casa, sim, da sua casa, casa essa que viera a perder mais tarde. Diz apenas arrepender-se de não a ter dado também, afinal roubaram-lha à vista de todos sem justiça. Podia ter sido salva se pedisse ajuda. Mas ajuda era o que não queria, porque ela só queria ajudar. Hoje, ao vê-la pedir um pão torna-se difícil imaginar que já vivera como a maioria gostaria, o que a diferencia dos demais é que nunca temeu largar tudo para dar de comer a uma criança faminta em mais um dia sem escola. Era essa leveza que lhe dava aquele sorriso, aquele sorriso que irradiava felicidade. Disse-nos saber distinguir bons corações. O tempo que viveu pelas ruas ensinou-a a saber com quem contar, coisa que nunca aprenderia a viver na abundância que já a havia cercado. Perguntou-nos em tom de ironia querida, do que afinal tínhamos medo. Uns do futuro, outros do passado, outros de mais tarde ou mais cedo poderem vir a estar numa situação semelhante à dela, ao que ela calmamente respondeu "nunca estarás numa situação semelhante à minha, porque eu podia ter tudo, mas escolhi ter mais". E foi com esta frase que quase se despediu.
Mais tarde, já chegados a casa, a frase surgiu em tom de dúvida existencial. Afinal para onde caminhávamos todos com medo, tínhamos medo do quê afinal, de perder a comodidade que nos embala? Se largássemos tudo, como ela, não teríamos nada a perder, seríamos nós, seríamos autênticos. Íamos depender da boa vontade dos outros, mas também íamos aprender a não rotular miúdos como nós, como tantas vezes fazemos, íamos aprender a distinguir entre uma multidão, a pessoa certa. Não procurámos nós afinal entender o mundo que nos rodeia? Qual será então a melhor maneira de o fazer? Não será vivendo com a leveza daquela velhinha? Estas questões ficaram todos no ar. Deitámos mais um cavaco à lareira e deixá-mo-nos ficar confortavelmente sentados à lareira. Ali tínhamos a nossa resposta, mais não somos que isto, comodismo, vontade de ficar quietos, vontade de nos sentirmos seguros, num mundo onde, para nós, mais não há que insegurança. E lá fora estaria a senhora, envolta por um calor que brotava dela própria, um calor que além de aquecer brilhava e iluminava o caminho daqueles que queriam ver.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, ...
-
Às vezes o simples entender do andar do tempo e do desenrolar do seu processo fazia-lhe impressão ao olhar para os que lhe eram de perto......
-
Mais uma manhã de chuva, daquelas manhãs que dá vontade de não deixar ir embora porque nos embala num sono em que se fica acordado e se par...
Sem comentários:
Enviar um comentário