O insustentavel peso da realidade
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Era uma vez... Um menino muito pequenino, sentado à janela do seu quarto. Dali via um pequeno riacho, umas escadas, daquelas que já não há, cavadas na terra, sem mais nada... Daquelas escadas que se a passada fosse mais forte se desfaziam e a queda seria o destino mais provável. No entanto, mesmo com essas escadas, as pessoas não tinham tanto medo de cair como agora, nas escadas fortes e seguras que construíram para evitar uma queda, que até sabia bem e arrancava uma gargalhada. Dali conseguia ouvir o rio correr, correr para o mesmo sítio de sempre, ainda não sabia que o mesmo sítio de sempre podia ser sempre diferente. Desta janela imaginava lutas intermináveis contra monstros nunca vistos, imaginava-se capaz de voar um dia, correr o mundo como corria pelos quintais à volta de casa, porque o mundo era pequenino só para quem sabia voar. Dali imaginou que seria diferente de toda a gente, que iria muito mais longe, dali, daquela janela conseguia perceber que não havia país que o dissesse como seu, não haveria limites nem obstáculos para as suas vontades. Seria livre, livre como nunca ninguém foi, ditaria o seu próprio destino, sem medo de opiniões, sem regras que o guiassem. Enfim, seria ele, ele próprio, como nunca ninguém se atrevera a ser. Depois, um dia, muitos anos depois... Já tinha cumprido a escolaridade obrigatória, já o tinham ensinado a não voar, cortaram-lhe as asas e deram-lhe um trabalho, que lhe impôs as regras que imaginara nunca ter. Durante algum tempo nem ia pelas escadas, subia de elevador, agora tinha medo que o elevador parasse e já temia cair escadas abaixo. Comprou um apartamento rés do chão com uma janela virada para o fim e uma gaiola para prender a imaginação. E o "era uma vez" tornou-se num "até ao fim" e por ali ficou até perceber que nunca tivera asas, tinha sim uma enorme vontade de voar, presa agora numa gaiola enferrujada
sexta-feira, 18 de setembro de 2020
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.
domingo, 6 de outubro de 2019
Coloquei-te o meu mundo na tua mão. Acreditei que contigo esse mundo poderia tornar-se mágico. A forma como brincavas com ele e como o fazias rodar à velocidade do teu sorriso, era feliz. Deixei-te ficar com ele. Acreditei que não faria sentido deixares de o fazer brilhar porque julgava brilhares também. Acreditei e não passou disso. Uma inocência que custou a quase destruição de um mundo que podia ter sido só nosso. No fim, partiste para outro mundo, para o teu, para aquele que nunca deixaste mesmo para trás. Aproveitaste que tinhas um outro mundo e foste brincado, quase como que quem brinca para passar tempo, ignorando que, como quando uma estrela aquece um planeta, todo esse planeta passa a depender do calor da sua estrela para continuar a viver. Mas tu não quiseste saber. Foste brincando enquanto foi conveniente ficar por outra galáxia, mas assim que te foi possível voltar, voltaste e nem esperança onde antes havia calor deixaste. Partiste sem problema, sabendo que já não precisavas deste mundo, porque agora já não precisavas de te entreter. E foste sem querer saber tudo o que destruíste, porque já nem valia a pena.
domingo, 21 de maio de 2017
Soltamos das paredes da imaginação o quadros com os sonhos... Caminhamos por caminhos que nunca tinham sido nossos... Deixamos quem éramos lá atrás e retocamos os quatros ainda há pouco desprendidos. Entorpecidos pelo amor, caminhamos enquanto pintamos, sonhamos enquanto caminhamos, construímos enquanto destruímos. Depois de soltos os sonhos, acabam por se prender em quem amamos. Ali, em quem amamos, residem agora os quadros dos nossos sonhos, as paredes da nossa imaginação, os limites da nossa existência. Ali, ali fica tudo o que já fomos e tudo o que gostaríamos de ter sido. Ali, como quem troca para uma casa maior e mais bonita, procuramos uma parede mais perfeita onde possamos decorar a vida.
Mas, quando por alguma razão o amor nos falha e a vida nos ludibria, deixamos de ser quem já fomos. Há muito deixamos aquelas paredes velhas. E há muito que os sonhos que um dia soltamos das paredes já não são os mesmos. Quando o amor nos falha por qualquer razão voltamos sem sonhos, pelo menos sem os mesmos. Porque aqueles que um dia foram os nossos, já são de outra pessoa, já não pertencem só à parede da nossa imaginação, agora são parte daquelas novas paredes que construímos em conjunto.
Voltados atrás já não somos nada. Já nos traímos, já nos perdemos. Já não somos quem fomos. Somos uma parede vazia, sem coragem, sem imaginação, sem vontade. Quando voltámos somos mais vazios, mais ocos, mais cansados, mais frios, mais tristes, mais sozinhos. Sempre que voltamos perdemos... E sempre que perdemos, perdemos-nos... Acabamos por cair no mais fundo que há de nós. Um fundo vazio, frio e sem sonhos. Soltamos das paredes os sonhos e levamo-los para longe de nós. E somos menos, cada vez menos.
Mas, quando por alguma razão o amor nos falha e a vida nos ludibria, deixamos de ser quem já fomos. Há muito deixamos aquelas paredes velhas. E há muito que os sonhos que um dia soltamos das paredes já não são os mesmos. Quando o amor nos falha por qualquer razão voltamos sem sonhos, pelo menos sem os mesmos. Porque aqueles que um dia foram os nossos, já são de outra pessoa, já não pertencem só à parede da nossa imaginação, agora são parte daquelas novas paredes que construímos em conjunto.
Voltados atrás já não somos nada. Já nos traímos, já nos perdemos. Já não somos quem fomos. Somos uma parede vazia, sem coragem, sem imaginação, sem vontade. Quando voltámos somos mais vazios, mais ocos, mais cansados, mais frios, mais tristes, mais sozinhos. Sempre que voltamos perdemos... E sempre que perdemos, perdemos-nos... Acabamos por cair no mais fundo que há de nós. Um fundo vazio, frio e sem sonhos. Soltamos das paredes os sonhos e levamo-los para longe de nós. E somos menos, cada vez menos.
terça-feira, 14 de junho de 2016
Morreste-me ali amor... Sei que ainda respiras... Mal, mas respiras... Sei que ainda aí vives... Mas sei que te perdi ali algures onde a vida vira... Fomos tantas e tantas vezes ao limite do ser que nos perdemos para lá do ir... Fomos longe demais procurar o que tínhamos mesmo à mão de ser... Quisemos ser tudo... Quisemos viver tudo, quisemos ter a certeza... E com a certeza de que o amanhã é incerto, guiamo-nos pela incerteza... Perdidos por ali... Fomos morrendo...
Agora, agora vais-me a enterrar quando não restar nada... Quando formos só uma imagem do ontem, um sonho enterrado vivo e morto à nascença... Morremos ali... Aonde a vida vai e nos ficamos... Vamos a enterrar, sozinhos de nós...
sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.
Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.
Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.
Nuno Júdice, in O Estado dos Campos (Dom Quixote, 2003)
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